Fernando Schmitt é um daqueles nomes maiores da Medicina que praticamente dispensam apresentações. Considerado um dos maiores especialistas mundiais em citopatologia e em cancro da mama, é patologista, investigador do CINTESIS e líder da candidatura do RISE (Rede de Investigação em Saúde: do Laboratório à Saúde Comunitária) a Laboratório Associado, no concurso lançado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) em 2020.
O seu percurso pessoal e profissional tem sido pontuado por grandes desafios e por arriscadas travessias entre continentes, numa busca incessante por mais altos voos e pelo almejado lugar ao sol pelo qual tem trabalhado ao longo da vida.
Nasceu em 16 de agosto de 1959, em Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul, no Brasil. O pai era médico, filho de emigrantes alemães (daí o sobrenome Schmitt) e a mãe era dentista, de origem francesa. “O meu pai tinha o único consultório de reumatologista da cidade, mas nunca ficou rico. Davam-lhe galinhas, apesar de morarmos num apartamento”, lembra-se, sem conter o riso.
Estudou no Colégio Marista Santa Maria, sempre com excelentes notas. Achavam que podia ser padre ou advogado. Ele sonhava ser bombeiro, “lixeiro” ou domador de leões. Em 1978, entrou no curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria, onde o pai era professor, mas afirma que nunca se sentiu pressionado para ser médico e que só decidiu no último dia da sua candidatura ao Ensino Superior. A paixão pela Medicina foi praticamente instantânea. “Nunca me arrependi nem sei como seria a minha vida com outra profissão. Nem consigo imaginar”, admite.
Escolheu Patologia no terceiro ano, por causa dos professores da cadeira, que o inspiraram. No quarto ano, já fazia autópsias, aproveitando todos os tempos livres, como noites e fins de semana. Acredita que “a Patologia é a especialidade que melhor resume a Medicina como um todo. Precisamos de saber um pouco de tudo”. Por outro lado, “está na transição entre a área básica e a área clínica, com os pés em ambas. Se há uma especialidade que é capaz de falar com o cientista e com o cirurgião na mesma linguagem é a Patologia”.
Terminou o curso em 1983 e quis logo fazer o internato na Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP), o mais conceituado, mas a mais de mil quilómetros da sua terra natal. Reconhece que foi difícil, nos primeiros tempos. Até ponderou aceitar um convite dos seus professores para dar aulas na universidade onde se licenciou, mas queria fazer carreira e crescer sem a sombra de ninguém e escolheu Botucatu. No final do internato, a questão voltou a colocar-se e a decisão foi a mesma. Em 1987, tornou-se finalmente professor da UNESP e um ano depois foi fazer a especialização no Karolinska Medical Hospital, na Suécia.
“O Karolinska era a Meca da citologia aspirativa interventiva. Era o melhor do mundo. Foi também a primeira vez que morei fora do país. Era casado e já tinha o meu filho mais velho, então com poucos meses. Foi uma decisão muito difícil. Quando regressei, nove meses depois, ele não me conhecia. Nunca mais vou esquecer. Hoje o meu filho, que também é médico, é o meu melhor amigo”, conta, com indisfarçado orgulho.
De regresso ao Brasil, continuou a lecionar e a investigar na UNESP, onde fez o doutoramento em Cirurgia Experimental, em 1990. Estava tudo pronto para fazer o pós-doutoramento nos EUA, quando surgiu a oportunidade de vir para Portugal, em 1992, com uma bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil. Mudou-se com toda a família, incluindo os dois filhos. Abdicou do conforto e dos “luxos”. A adaptação foi fácil, excetuando o frio dentro de casa.
Ainda teve de voltar ao Brasil, mas viria a instalar-se definitivamente na cidade do Porto. Os filhos foram a principal razão. “Foi a coisa mais arriscada que fiz na minha vida. Eu a e minha ex-mulher, que é pediatra, pedimos a demissão do serviço público. Foi um tiro no escuro. Se não corresse bem, eu estava perdido”, desabafa.
Felizmente, correu bem. Em 1997, Fernando Schmitt passou a fazer parte do corpo docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde é Professor Associado com Agregação. Entre 2015 e 2016, foi professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Toronto (Canadá), uma das dez melhores do mundo. Adorou a experiência. Havia um único problema: desta vez, a família não foi com ele. Do Canadá voou diretamente para o Laboratório Nacional de Saúde do Luxemburgo, pela mão de um escritório de “head hunters” ou “caça-talentos”.
“Fiz entrevista e fiquei como diretor durante dois anos, liderando uma equipa de cerca de 200 pessoas. Nunca ganhei tão bem em toda a minha vida, mas o dinheiro não é tudo. Foi um período em que aprendi muito, mas tive de deixar de dar aulas e de fazer investigação, que é o que mais gosto de fazer. Decidi, então, voltar para a FMUP”, explica.
Atualmente, é um dos mais conceituados especialistas em Citopatologia e em Patologia Mamária a nível mundial, liderando a Unidade de Patologia Molecular na IPATIMUP Diagnósticos. As alterações moleculares do cancro da mama têm sido um dos principais temas da sua pesquisa, desde os mecanismos moleculares à aplicação clínica. É um campeão de publicações, com mais de 500 artigos em revistas científicas e capítulos de livros, além de 5 livros.
É presidente eleito e secretário-geral da Academia Internacional de Citologia (IAC), além de presidente da Sociedade Internacional de Patologia Mamária. É editor-chefe da revista internacionalPathobiology: The Journal of Translational Pathology.
Ganhou vários prémios, entre os quais o Prémio Dário Cruz, da Liga Portuguesa contra do Cancro, o GoldBlatt Award, da IAC, e o Prémio de Educador do ano de 2011 da Sociedade de Citologia de Papanicolaou. Continua a fazer citologias e a ver doentes. “Não sou eu que vou tratar, mas gosto de ajudar e de indicar o caminho”, justifica.
A convite do Professor Altamiro da Costa Pereira, encabeça a candidatura do RISE a Laboratório Associado. Mais uma vez, decidiu correr riscos e saiu do I3S para integrar o CINTESIS, que entra, neste concurso da FCT, juntamente com a UnIC, ambos sediados na FMUP, e com o CCUL – Centro Cardiovascular da Universidade de Lisboa e o CI-IPOP – Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO-Porto).
“Este é o meu drive, neste momento. O RISE é uma rede forte que pode funcionar como um catalisador da investigação. O CINTESIS e a FMUP ganham porque a rede amplia. Há muita concorrência e a fragmentação só prejudica. Devemos estar unidos na mesma direção”, conclui.
Ambição a 1 ano?
Queria ter saúde, antes de mais, porque sem ela nada se faz. E queria que o RISE começasse a funcionar.
Ambição a 10 anos?
Daqui a 10 anos, gostava de deixar o RISE como uma rede bem estabelecida e, nessa altura, poderei aposentar-me muito feliz. Quero ser como Pelé e não como o Maradona. O Pelé saiu quando viu que já não podia mais e continuou a ser respeitado. O Maradona forçou e, quando se força, destrói-se, em meses, o que se construiu durante uma vida toda. Tenho a minha cabeça bem preparada para largar quando tiver de largar.
Que vida para além da investigação?
Gosto muito de ler. Sou um consumidor voraz de literatura e leio qualquer coisa. Agora estou a ler um livro muito antigo do Vinicius de Moraes. Também gosto de ver televisão, sobretudo de ver séries, e gosto de caminhar, na Foz ou na Praia. Ao fim de semana, caminho com a Sule cerca de 10 quilómetros.
Gosto muito de viajar e viajei muito nos últimos anos. Era difícil estar duas semanas seguidas no Porto. Houve uma vez em que cheguei da Austrália e, no dia a seguir, fui para o Brasil. Se calhar por isso não tenha sentido muito a falta disso durante a pandemia.
Odeio telefone [risos] e não gosto de redes sociais. Gosto de estar com as pessoas. Uma das minhas maiores riquezas é conhecer pessoas e ter amigos em dezenas de países de todo o mundo.