A sede de conhecimento, o fascínio pela investigação e o sentido de missão são qualidades intrínsecas à personalidade de João Bernardes, atual investigador principal do grupo Charter: Desafios e Estratégia em Investigação em Saúde, da LT1 – Medicina Preventiva & Desafios Societais, do CINTESIS, Assistente Graduado Sénior do Centro Hospitalar Universitário de S. João, Professor Catedrático de Ginecologia e Obstetrícia e membro dos órgãos de gestão da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
Era ainda um menino quando soube que queria ser médico. À escolha não foi alheio o histórico familiar. O pai, especialista em Obstetrícia, Medicina Desportiva e Saúde Pública, e os avôs também exerceram Medicina, um deles na cidade do Porto, e o outro num meio profundamente rural, em São João da Pesqueira. Este foi quem mais o inspirou. “Ele tinha de saber de tudo: saúde pública, assistência a partos, pediatria, tratamento de fraturas, tratamentos dentários, autópsias, casos psiquiátricos. Estava disponível 24 horas por dia, sem cobrar dinheiro à população. Esse lado social deslumbrou-me completamente, é a visão mais romântica que se pode ter da medicina”, recorda.
Nasceu no Porto, mas cresceu em Vila do Conde e passou muitas férias no Alto Douro. Estudou no Liceu da Póvoa de Varzim. Foi jogador de hóquei em patins no Ginásio Clube Vilacondense, onde foi também dirigente associativo, nos tempos do 25 de abril, que o “apanhou” na adolescência. Viajou pela Europa em interrail, de tenda às costas. Entrou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1977, tendo terminado o curso em 1983. Era estudante e já ajudava em partos e cesarianas, num tempo, recorde-se, em que Portugal tinha um panorama nada lisonjeiro na mortalidade materno-infantil. Mesmo assim, a opção pela Obstetrícia ocorreu naturalmente, para espanto de muitas pessoas.
“Alguns colegas ficaram surpreendidos porque eu podia ter escolhido especialidades consideradas mais elitistas. Mal sabiam a evolução que a Obstetrícia teria. E nunca me arrependi. Ser obstetra é um privilégio, mas é muito exigente. Há uma grande expectativa por parte de todos (da grávida, da família, da equipa, da sociedade) e é preciso tomar decisões complexas rapidamente. É preciso ter alguma coragem. Antigamente havia muito menos recursos, mas hoje o exercício da profissão é incomparavelmente mais difícil. Hoje não podemos falhar. Temos permanentemente uma espada em cima da cabeça”, desabafa.
Concluiu o internato da especialidade no Hospital de São João em 1992. Em 1993, fez o seu doutoramento e passou a chefiar uma equipa de urgência. Em 1997, tornou-se responsável pela cirurgia laparoscópica/endoscópica, “uma autêntica revolução que permitiu fazer cirurgias tanto ou mais radicais de forma menos invasiva e menos agressiva para os doentes”. ”Hoje em dia toda a gente faz, mas, na altura, houve muitos obstáculos. Foi uma revolução brutal na forma de prestar assistência. Passamos a precisar de menos camas e menos tempo de internamento. Foi mais uma fase romântica, em que sentíamos o privilégio de podermos fazer coisas admiráveis”.
Foi fundador e diretor do Centro de Simulação Biomédica da FMUP, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Educação Médica, secretário da Sociedade Portuguesa de Engenharia Biomédica e liderou projetos da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica e da Fundação para a Ciência e Tecnologia que levaram ao protótipo e modelo comercializado do sistema de análise do cardiotocograma SisPorto.
Depois da passagem pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e pelo INEB (Instituto de Engenharia Biomédica), a criação do CINTESIS, pelo seu colega de curso e atual diretor da FMUP, Altamiro da Costa Pereira, permitiu prosseguir essa investigação “localmente, de forma mais funcional”. É atualmente investigador principal do grupo Charter, criado para desenvolver projetos que lidem com a complexidade dos desafios científicos, tecnológicos e éticos que resultam da investigação em saúde.
Com desafios ligados à gestão hospitalar e académica, desempenhou funções, de director do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia e de Director do Internato Médico, no Hospital de S. João, tendo desempenhado funções semelhantes no Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira, e no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde foi também membro da Comissão de Ética. Foi membro da Comissão Regional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente da Administração Regional de Saúde do Norte (ARS-Norte) e é membro do Conselho Disciplinar do Conselho Regional Norte da Ordem dos Médicos. Membro do conselho editorial e revisor de diversas revistas indexadas, é autor ou coautor de mais de 200 artigos científicos publicados em revistas indexadas.
É, desde 2017, presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia, onde já havia sido vogal e representante nacional no European College of Obstetricians and Gynecologists (EBCOG). “É um cargo muito desafiante e um dos mais interessantes que tive oportunidade de desenvolver. A nossa prioridade é manter a qualidade do exercício profissional da especialidade ao mais alto nível, com muita atenção à formação, à evolução da carreira e aos problemas médico-legais. Queremos ter os melhores especialistas do mundo”, diz, garantindo que não faltam especialistas em Portugal. “São mais do que a média europeia e claramente suficientes, embora só cerca de metade esteja a trabalhar no carenciado Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, diz. Entristece-o claramente o desinvestimento do Estado no SNS.
Pessoalmente, considera-se um “pai babado” e uma pessoa realizada, com muitos planos para o futuro.
Ambição a 1 ano?
Como investigador, a minha principal prioridade é dar a devida atenção ao grupo SisPorto, com várias ramificações no CINTESIS. Quero olhar para o futuro, com a experiência do passado, e ajudar este grupo a evoluir como tem evoluído até agora, de forma muito positiva. Vejo os investigadores muito interessados, com ideias novas, a pensar em aplicações práticas, clínicas, e na ligação à indústria, tornando possível uma partilha mais generalizada dos avanços tecnológicos. Também é possível aplicar o nosso conhecimento a áreas não obstétricas.
Ambição a 10 anos?
Nessa altura, já estarei reformado, mas de certeza que irei continuar a interessar-me por métodos análise de aplicação generalizável aos diversos sinais biológicos. Ao longo dos anos, acumulámos muitos sinais biológicos e dados clínicos que gostaríamos de partilhar de uma forma mais alargada com a comunidade científica em todo o mundo, de países ricos e pobres, que não tiveram o privilégio que nós tivemos de conseguir recolher milhares de dados, salvaguardando a proteção e segurança dos dados pessoais. Esse será o meu foco nos próximos anos.
Que vida para além da clínica, da investigação e da docência?
Gosto de atividades desportivas e ao ar livre. Tenho menos tempo para as atividades culturais convencionais. Gosto muito de andar de bicicleta, de nadar duas a três vezes por semana, de viajar. Não consigo ir à praia sem ir à água. Ainda tenho lá os patins e o stick.
Passo muito tempo com coisas de família e de amigos. É bom poder estar disponível para prestar cuidados, quando necessário, e também para as coisas de casa, os objetos, as histórias, as recordações. Tenho muita admiração pelos cuidadores que fazem disso a sua principal razão de ser, na família, nos amigos ou na profissão. É muito difícil.