Wilson Abreu é investigador integrado do CINTESIS, no polo da Escola Superior de Enfermagem do Porto (ESEP), onde é Professor Coordenador Principal. O seu percurso cruza diferentes continentes e áreas do saber, movimentando-se entre África e a Rússia, entre a Saúde e as “Ciências Interpretativas”, entre as rosas do seu jardim e os clássicos da literatura mundial, entre o HIV e as demências.
Nasceu em Angola em 1959, descendente de colonos madeirenses que se fixaram no Lubango, no Sul, há cerca de dois séculos. Recorda-se de ter sido “um período fantástico” da sua vida. Filho de um funcionário das obras públicas, mudou-se, entretanto, para o Norte daquele país, próximo do antigo Zaire, uma zona conhecida pelos conflitos armados. Como todas as guerras, essa gerava medo, ansiedade, stress pós-traumático. Vem dessa altura o seu interesse pela saúde mental.
“Desde muito cedo, habituei-me a viver em situação de guerra e a lidar com o sofrimento humano e com o trauma. Durante anos, partilhava o mesmo espaço lúdico com militares. Eu era uma criança absolutamente normal e fazia muitas perguntas sobre o que via. Isso marcou muito a minha infância”, conta.
Mais tarde, mas ainda antes da descolonização, “tive de viver também a terrível guerra fratricida na altura da independência. Nessa altura, as questões culturais foram muito marcantes porque era em grande parte uma guerra entre grupos étnicos. Conheci muitos deles – os hábitos, as crenças, as preferências, as representações, os rituais. Percebi que a cultura é fundamental na natureza humana e que marca as relações, os comportamentos e as tomadas de decisão. E que cada grupo cultural, a partir das suas crenças, construía os seus próprios sistemas de cuidados”.
Em 1975, mudou de cidade, de país e de continente. Apanhado no processo de descolonização, instalou-se no Porto, em plena adolescência e no final do ensino secundário. Uma péssima altura para mudanças, portanto. Mas nem tudo foi mau: a receção foi calorosa, contrastando com o frio do outono que, na altura, se fazia sentir.
“O processo de integração é sempre difícil, mas eu posso considerar-me feliz pelo acolhimento que tive quando cheguei. O que mais me custou não foi a relação com os colegas, ou o ambiente sociopolítico, mas a diferença climática. Lembro-me que nessa altura tive o prazer de começar a estudar os clássicos portugueses. Esses clássicos foram importantes para consolidar a minha identidade cultural”, conta. Tive a felicidade de ter professores fantásticos que, ainda no ensino secundário, nos falavam sobre os clássicos da literatura, mesmo de outros países. Em contacto com os clássicos da literatura francesa, inglesa, brasileira e russa aprendi que estes são “absolutamente essenciais para compreender a natureza humana”.
Ao longo dos anos, aproximou-se progressivamente da área das Ciências da Saúde. Graduou-se em Enfermagem e fez a especialização em Saúde Mental e Psiquiatria em 1987. Iniciou a atividade docente em 1989. Concluiu o mestrado e o doutoramento em Ciências da Educação pela Universidade de Lisboa, em 1994 e em 1999, respetivamente.
Fez o primeiro pós-doutoramento em Paris, na área da Antropologia (sobre as representações sociais ligadas à saúde e à doença). No essencial, “foi possível compreender de que forma a cultura interfere com a saúde, a doença e os sistemas de busca e prestação de cuidados”. Estudou com maior profundidade os sistemas de assistência e a mutilação genital feminina.
Oito anos mais tarde, com o “terminus” de um projeto europeu centrado na demência, desenvolveu um conjunto de estudos centrados na demência avançada e nos cuidados paliativos e colaborou na elaboração de protocolos europeus de boas práticas nos cuidados a disponibilizar a estas pessoas, enfatizando a importância dos profissionais de Enfermagem no acompanhamento dos utentes e dos seus familiares cuidadores.
Este foi, aliás, o objeto do seu segundo pós-doutoramento, em 2018, pela Universidade de Aveiro e pela University of the West of Scotland, em Glasgow, Escócia, enquadrado num projeto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. A colaboração com a Universidade de Aveiro, a nível do ensino pós-graduado e da investigação, permitiu realizar um trabalho inovador a nível nacional, mais tarde disseminado para todo o país: a supervisão clínica em enfermagem.
Tornou-se investigador integrado do CINTESIS quando se deu a aproximação da ESEP ao Centro de Investigação sediado na Universidade do Porto. Efetivamente, a presença no CINTESIS fez, na sua opinião, “a diferença na investigação da ESEP. Passamos a ter parceiros de outras áreas disciplinares com quem podíamos fazer investigação em saúde. Era já essa a tendência da investigação na União Europeia. Não se descurou a investigação no quadro específico da Enfermagem, mas abriu-se a possibilidade de desenvolver pesquisa com outros parceiros na área da Saúde – saúde mental, geriatria, inteligência artificial e sistemas de informação.
Wilson Abreu possui, no seu currículo notável, uma vasta experiência como investigador e professor a nível internacional, embora tenha também exercido atividade nas áreas da Gestão. Em 2020, completou 28 de docência. Em 2018, obteve o título de Professor Honoris Causa. Comemorou 20 anos de docência na Federação Russa, na Lituânia e no Brasil. Neste último país, integra grupos de estudos sobre doenças infeciosas, nomeadamente HIV/SIDA e agora COVID-19, recorrendo a modelos matemáticos e à inteligência artificial. “Não fora a pandemia, 2020 teria sido um ano de ouro a nível dos projetos e parcerias internacionais”, diz.
Precisamente em 2020 ano e por causa da pandemia de COVID-19, um dos grupos de investigação que integrava, com investigadores portugueses e espanhóis, recebeu financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para desenvolver um projeto que equacionou a necessidade de estudar o equilíbrio entre o confinamento e a preservação do essencial da economia, importante para o funcionamento da sociedade. O estudo baseou-se em modelos matemáticos (“optimal control models”) para compreender a disseminação do vírus e as políticas de confinamento. Os resultados mais relevantes do estudo foram publicados este ano, com o título: “Optimal control of the COVID‑19 pandemic: controlled sanitary deconfinement in Portugal”.
“Sabemos que o confinamento previne a propagação do vírus, mas também sabemos que, se mantivermos os países fechados, debilitamos a economia. Temos que encontrar um ponto de equilíbrio. Este nosso trabalho demonstra que não podemos estar em períodos confinamento muito longos, mas que também não podemos prescindir deles para travar, estancar a disseminação do vírus. O nosso artigo ajuda a compreender que é preciso ter períodos de confinamento rigoroso, seguidos de períodos de abertura, que devem ser decididos a nível regional e em função de determinados critérios. Os decisores políticos estão a fazer agora algo que nós tínhamos concluído que seria o melhor caminho para a nossa sociedade”, afirma.
Este projeto parte de um trabalho desenvolvido anteriormente com o Imperial College (Londres) e com as Universidades Federal e Estadual do Ceará, no Brasil, onde explorou com equipes multidisciplinares a Inteligência Artificial para a compreensão e prevenção da disseminação do HIV.
Autor de vários livros e de artigos científicos em revistas especializadas e com cerca de duas centenas de conferências dadas em todo o mundo, Wilson Abreu vê, agora, com “muita esperança” a criação do RISE – Rede de Investigação em Saúde. E acredita que a realidade multidisciplinar do CINTESIS será claramente amplificada com o laboratório que recentemente foi aprovado pela FCT, “uma conquista da qual nos devemos orgulhar”.
“Acredito que este Laboratório será a amplificação do espírito multidisciplinar que já existe no CINTESIS. Temos tudo para ter um centro de investigação extraordinário, com potencial para desenvolvimento de projetos a nível nacional e internacional e, sobretudo, com uma enorme capacidade de translação das evidências da investigação para a sociedade, através das instituições de saúde envolvidas na rede”, conclui.
Ambição a 1 ano?
Em termos de investigação, temos em mãos projetos com o Brasil, já financiados, na área da COVID-19. O estudo parte de diversas interrogações. Queremos saber qual foi o impacto da infeção e do confinamento no estado psicológico das pessoas, incluindo os profissionais de saúde, que tiveram de lidar com doentes em situação muito crítica. Outro aspeto que vamos tentar estudar também são as consequências da infeção na saúde, a médio e longo prazo. Estamos a falar essencialmente de sequelas a nível neurocognitivo, pulmonar e neurológico. Devo dizer que o mais animador é que já não partimos do zero. Milhares de unidades de investigação estudam estas áreas e partilham (como nunca aconteceu antes) os seus resultados e as suas evidências. Acredito que a COVID-19 ainda irá marcar a minha investigação nos próprios dois ou três anos. Acredito que a investigação com o Brasil na área do HIV/SIDA continue na minha agenda, pois vários estudantes de doutoramento estão a trabalhar esta área.
Ambição a 10 anos?
Estou a prever que vamos conseguir controlar a COVID-19 em poucos anos, fundamentalmente com a massificação das vacinas. Mas o muito que aprendemos fará dos próximos anos “anos de ouro” em muitas áreas. Concluímos que a prevenção é absolutamente essencial para as pessoas e para as sociedades. Apostaremos certamente em diversas áreas da literacia em saúde. Os quadros demenciais tenderão a agravar-se, não apenas devido ao envelhecimento da população, mas também aos sucessivos confinamentos. Temos algumas soluções a nível clínico, não para fazer regredir os quadros demenciais mais graves, mas para promover conforto e preservar ao máximo a capacidade de autocuidado. Paralelamente, a solução passa também por investir em mais e melhor suporte social, a par de intervenções especializadas que os profissionais de saúde mental conhecem bem. As sociedades têm que fazer muito mais para apoiar os seus idosos e, entre este, os que sofrem de demência. O apoio a nível político e local aos cuidadores familiares tem que ser intensificado. Nestas áreas, a Enfermagem tem um papel fundamental a desempenhar – quer desenhando quadros de inteligibilidade para produzir e amplificar conhecimento, quer investido mais na operacionalização do autocuidado, gestão dos regimes terapêuticos e apoio aos familiares cuidadores. Tudo isto são dimensões que saberemos equacionar, trabalhar e aprofundar.
Que vida para além da investigação?
“Muita, certamente muita. Gosto muito de automóveis, de explorar a tecnologia automóvel, mas também tenho orgulho no meu jardim, com várias frutíferas e sobretudo várias dezenas de espécies de roseiras. É um investimento muito pessoal. Penso que tem um efeito terapêutico… ajuda-me a ter uma atitude mais positiva perante a vida, essencialmente quando, como toda a gente, tenho momentos de maior dificuldade. Acho, ou tenho mesmo a certeza, de que as minhas roseiras me ajudaram muito durante o confinamento. Cuido delas quase diariamente. Conheço-as uma a uma. Uma rosa é uma obra de arte da natureza – o cúmulo da perfeição. Também gosto das minhas árvores. Gosto de as ver crescer, florir e dar frutos. Tudo isso leva tempo, mas é um bom investimento na saúde mental e nesta necessidade de manter, apesar de tudo, uma atitude positiva perante a vida”.
Mas faz-me muita falta estar com os meus colegas de outras sociedades e países. O Zoom não resolve tudo. É isso que aprendemos no dia a dia, com os nossos estudantes. A relação de proximidade é muito importante para o ser humano. Espero que possamos recuperar, em breve, o que esta pandemia nos tem roubado.